sexta-feira, 26 de junho de 2009

Subiu os tres lances de escada do pequeno prédio como sempre, devagar, como se inevitável chegar em casa, as pernas se arrastando degrau por degrau, o coração acelerado sem emoção alguma, e o mau humor querendo se aninhar no canto amargo da boca ressaquiada . Ouviu alguém discutindo no andar de baixo futilidades, falta de dinheiro, voce não presta mesmo ! , uma freada lá fora desvia-lhe a atenção, lembrou-se do sorriso inocente da menina de tres anos, neta de sua mulher, que viria correndo pro abraço e abriu a porta do que achava fosse seu desgraçado apartamento. Uma barraca de lona laranja armada bem no meio da sala, os cordames esticados até os pés dos móveis,um pessoal jogado pelo chão . No seu canto preferido um jovem esquálido de cabeça pra baixo parecendo meditar ou algo parecido, "tenho certeza que moro aqui, lá estão meus discos espalhados, meu som, meu cheiro, enfim o meu eu domesticado está aqui e disso não posso recuar".
Procura Nirna e resolve entrar de vez, e como um solitário desconhecido pedindo as horas a quem passa, como um lobo estrangeiro pediu fogo a um deles e foi abrindo caminho no acampamento por entre pernas e corpos, e sentiu uma imensa vontade de se deitar e dormir. Nirna deve ter saido com Karina, não estão em lugar algum, pensa enquanto pega uma toalha na prateleira. Pede licença ao casal que conversa perto da privada, pode ver seu jornal e as revistas pornô num banquinho ao lado, sentindo-se seguro para finalmente iniciar mais um convencional fim de semana com a família. Hector sabia não haver como retroceder. Quem traçara toda a loucura por trás das coisas de sua vida fora ele próprio, desde o primeiro momento, o primeiro gole de conhaque vagabundo, o primeiro rock em parceria, o sonho mal planejado do trem até Santa Cruz de la Sierra, Pocho sempre desobstaculizando as cancelas do caminho. " Hay muertos qui non hacen ruídos,pero és mas grande sú penar ", recitava baixinho Baez, enquanto bolinava Nirna, e suas coxas brancas contrastando o ruivo de seus pelos.
Nesta mesma noite do outro lado da cidade estranhos acontecimentos ocorriam. Santino, o epilético, num ataque rolara na enxurrada da forte chuva que caía há mais de uma semana, e sumira no sorvedouro de um esgoto, e todos que assistiram a cena nada puderam fazer pois estavam com as mãos carregadas por coisas das mais variadas, uns levavam mantimentos, outros seguravam firmes as mãos dos filhos para a força da água não arrastá-los, e outros, simplesmente persignavam-se paralizados na ultima homenagem. Mesmo com a água subindo, mesmo com os barcos em vez das bicicletas, mesmo com toda a tragédia desse diluvio, os assaltos se multiplicavam, roubava-se de tudo e de todos. O povo com seu tradicional olhar de medo já não confiava em ninguém e as cabeças iam baixas , os olhares furtivos. Chove até hoje em meus melhores pesadelos.

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